sábado, 26 de fevereiro de 2011

O Hotel

O Petit Trianon fica na esquina da Rue de l’Ancien Comedie com a Rue de Bucci, no velho sobrado acima do Café Comti. A princípio eu achei que o acesso ao hotel era feito pelo café, mas o garçom me indicou uma porta ao lado, no fim da calçada. Era uma dessas entradas escuras que lembra uma boca enorme, aberta, e que, ao empurrar a porta, nos da impressão de sermos engolidos pelo passado da casa.  A recepção funcionava numa sala estreitíssima do primeiro andar do prédio, ao qual se tem acesso por uma escada igualmente estreita. Nada de elevadores. Você sobe, alcança uma portinha envidraçada, gira a maçaneta e leva um choque!...

A decoração é tão inusitada, para não dizer aberrante, que de cara julguei ter entrado num mercado de pulgas: o teto estava tomado por buquês de flores secas que semelhavam vassouras de piaçava, ao fundo, um pequeno balcão de madeira desaparecia soterrado por uma coleção de biscuits, bonecas de porcelana, vidros antigos de farmácia guardando vértebras de serpentes, almofadas de crochê, abajures, bolas de cristal, uma gaiola vazia, cestas com peças de xadrez e cartas de baralho, tartarugas de estanho, um falcão empalhado, miríades de vasos de louça, candelabros desirmanados, um cabo de guarda-chuva de ébano sem o guarda-chuva, relógios parados, cédulas de dinheiro emolduradas, um revolver enferrujado, uma taçazinha de Saxe, porta-retratos, vetustos cartazes de cinema, calendários desatualizados, toda uma variedade de espelhos, potes repletos de moedas, uma constelação de canecas... ah, falta-me o fôlego.  

Por um minuto fiquei inteiramente abismado na contemplação estúpida daquele estranho aparato, enquanto isso o concierge, um rapazinho árabe, de nome Mahmoud conferia minha reserva no livro de registros. Reparei que ao lado do livro havia um sinete de ágata, uma faca de marfim com monogramas de prata para abrir cartas, e um tinteiro seco e inútil junto de um álbum de estampilhas... Tive um calafrio de arrependimento, já não estava certo de querer me hospedar ali, mas não tinha outro jeito, foi a única hospedagem que consegui, aliás, que conseguiram depois de muita procura pela internet. Comecei então a murmurar para mim mesmo: decoração vintage... decoração vintage!            


Mahmoud era super bem-humorado, simpaticíssimo, e provavelmente já estava acostumado com o semblante desconcertado dos hóspedes recém-chegados: - Nós temos quartos menos bizarros, monsieur – disse ele, todo sorridente. Repliquei que estava achando tudo fantástico, só que aquele excesso de decoração instigava um pouco minha coriza: - Arrete ça... Je suis allergique!... Ele sorriu, e depois de achar meu nome na lista, informou que eu ficaria no quinto andar, num quarto clean, com vista para a Notre-Dame!... Ôpa, já me entusiasmei.


Subimos por uma escada de madeira em caracol toda atapetada, que mexeu muito com o lado trágico de minha imaginação – sem plaquinhas de proibido fumar, sem extintores, com muitas quinquilharias e flores espalhadas pelo teto, tudo conjurava um incêndio!... Bastava a fagulha de um isqueiro, de um fio elétrico descascado, e aquela espelunca seria consumida em minutos, por uma labareda única e triunfante!... Misericórdia... Perguntei a Mahmoud se havia saída de emergência. Ele sorriu novamente e disse não, depois, como se adivinhasse meu pensamento, lembrou que, na França, era proibido por lei fumar em qualquer ambiente fechado. Sei!... Perguntei ainda se ele dormia no Hotel. Não, ele morava no subúrbio, e fechava a recepção à meia-noite. Ah, tá!... Tentei então me concentrar na dor dos pés para calar a ansiedade, porém a visão do quarto não deixou...

  Não sei o que um jovem árabe, radicado em Paris, entende por clean, mas esta não era a palavra exata para descrever aquele quarto. Tudo denunciava uma fracassada tentativa de luxo, já tão demasiado cafona e ridícula que havia se tornado pitoresca. Parecia ser um quarto, ou, como se diz em boa literatura, uma alcova saída de um romance de Colette, talvez Chéri ou La fin de Chéri. Todo o conjunto da decoração, os carpetes, as cortinas, a cama, a poltrona explodiam em tons de amarelo e lilás, era com se eu tivesse entrado numa tela de Toulouse-Lautrec, da fase Moulin Rouge, onde cortesãs idosas e solitárias terminam seus dias contemplando a rua boêmia da qual já não fazem parte.

A iluminação era feita por dois abajures na cabeceira da cama de casal, havia um aquecedor, banheiro com privada e chuveiro quente, uma mesinha, uma cadeira, uma cômoda, mas não havia televisão. Duas tomadas: uma ao lado da cama, outra no banheiro. E duas janelas enormes, ambas com varanda e uma cadeirinha na varanda. E quanto à vista da Notre-Dame... bem, era apenas a pontinha de um dos campanários em meio a muitos telhados!


Mahmoud me entregou as chaves (uma que abria o quarto, outra que abria a portaria do hotel caso chegasse fora de hora), informou que não serviam café da manhã, mas havia ali perto uma Häagen-Dazs com bons croissants de fromage e chocolate. Disse ainda que horário de faxina era às 13 horas, de modo que eu não poderia dormir até depois do meio-dia. Por fim, desejou-me uma boa estadia e se foi.

Por 50 euros de diária, mais parisiense impossível.  

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