sábado, 19 de março de 2011

As Duas Torres


À medida que o barco se aproximava da Torre Eiffel (cuja vista desde o rio Sena é simplesmente impressionante) uma imagem começava a se formar em minha mente: a de que aquele monstrengo empertigado e esguio, não era uma estrutura de ferro, mas o esqueleto jurássico de um brontossauro que, há milhões de anos, na tarde apocalíptica que os haveria de extinguir, passou por ali faminto, erguendo o pescoço alongado para pastar a copa verdinha de uma conífera igualmente longa!... E eis que um meteoro imenso, candente, riscou o céu num horripilante rugido sideral, caindo, precipitando-se, espatifando-se, sumindo ao longe, e daí a pouco sobreveio um abalo sísmico, soprou um vento impetuoso, que imediatamente foi sucedido por uma ardente onda de energia térmica, que se alastrou pelo planeta, devastou os vales, florestas, desencadeou tsunamis, e atingiu o brontossauro distraído, calcinando-o até os ossos, imóvel, e assim o preservou na pose longilínea e hedonista de quem, ao invés de se desesperar, ocupou-se em gastar seus últimos instantes da vida na degustação de uma saborosa conífera, que então se consumiu, retorceu e fumegou qual um fósforo gigante!... Acabou-se tudo, exceto a ossada do gigante pré-histórico, que até hoje ali permanece!...


Quanta bobagem, eu sei, mas preferia imaginar isso a ter que aceitar a futilidade cafona e monumental daquela torre feiosa. Minha antipatia era tanta que, quando o barco aportou no cais, tive a impressão de sentir o cheiro desagradável de ferrugem. Para que então fui até lá?... Bem, acho que para usufruir do único benefício que aquela torre proporciona: uma vista singular de Paris!...


Mas tudo tem seu custo (e no fim não dá pra saber se valeu à pena)... Primeiramente eu tive que transpor as barricadas de camelôs magrebinos que assediam os turistas chacoalhando suas torrezinhas em miniatura, seus chaveiros do Chat Noir, e uns bichinhos fosforescentes de borracha. Depois vem as tropas de soldados mal-humorados, armados até os dentes que sondam e encaram cada visitante, sobretudo os estrangeiros, como um potencial terrorista. Não obstante, passados estes trambolhos, você pode ir até o parque que fica junto à torre ou voltar e cruzar a ponte que leva ao Trocadero – mas aviso: ambos são verdadeiras farofadas!... Você vê de tudo: além das hordas de turistas e falanges de camelôs insistentes, de tendas e barracas, surgem os ciganos golpistas, alguns grupos de adolescentes arruaceiros dispostos a “causar” fumando maconha e se bolinando escondidos entre as árvores, e outros viciados melancólicos que perseguem os passantes cantando e esmolando... O clima além de frio é tenso, é tão carregado que a cada passo eu lembrava as advertências de Ludovico Septembrine, personagem da “Montanha Mágica” de Thomas Mann: “vele pela sua dignidade! Seja orgulhoso e não se perca no ambiente estranho! Evite atoleiros, esta ilha de Circe. O senhor não é bastante Ulisses para percorrê-la impunemente!”... Apressei-me então em fazer uma foto e voltar imediatamente para o pé da torre, pois estava disposto a subi-la.  





Mas lá chegando... Ulalá!... Deparei-me com uma fila que era, assim... quilométrica!... Hesitei: subir ou não subir, that’s the question!... Como não tinha coisa melhor a fazer, resolvi subir. Afinal seria melhor arrepender-se do ato que da omissão. Então depois de mais de duas horas de espera, depois de dois detectores de bombas, chegou a minha vez de comprar os ingressos. Comprei para ir até o topo, e dali fui para a fila seguinte, a do elevador. A diferença é que ali já não há mais organização nenhuma, é só empurra-empurra mesmo, bem do jeito que o francês gosta.


O elevador é original, da época da construção da torre e, portanto, lerdo, absurdamente lerdo. Demora uns 15 minutos entre uma subida e outra, deixando todo o processo muito lento, com a multidão se amontoando, já arrependida, a murmurar interjeições. Fui direto para o segundo andar, onde é preciso trocar de elevador para chegar ao terceiro. Pensei em comer alguma coisa no restaurante que funcionava ali, mas como já estava uma verdadeira muvuca, fui direto para a fila, que serpenteava e se comprimia, de modo que os outros turistas, que não iriam adiante, ficavam pedindo para passar e tirar foto da beirada da varanda. Eu já estava apreensivo, imaginava tragédias em meio aquela desordem, e me angustiava com o piso que é levemente inclinado para fora dando uma sensação estranha. Além disso, o vento soprava furiosamente e fazia um frio de parar o coração. Procurei ficar o tempo todo recostado em alguma pilastra para me abrigar e, ao mesmo tempo, sentir-me um pouco mais seguro. Notei que já estávamos mais altos que o Arco do Triunfo.


Depois de mais uns 30 minutos na fila entramos novamente no elevador, indo para o último andar, que pelo menos tem grades na varanda, e uma escada que dá para um mirante, praticamente no topo da torre, com uma vista magnífica da cidade. Esse ponto é tão alto e venta tanto que o ambiente é todo fechado com vidro para proteger os visitantes. Ali, percebi, por sobre as paredes de vidro, um painel que traz o nome de diversas cidades estrangeiras, bem como suas respectivas distâncias em relação à Paris.  

Grudar-se a uma destas paredes é a melhor coisas a se fazer, e eu logo me debrucei contra o vidro para tirar as melhores fotos possíveis da cidade. Foi então que avistei uma outra torre mais adiante, a Tour Maine-Montparnasse, que fica em Montparnasse, e trata-se do primeiro arranha-céu de Paris, um edifício cilíndrico, marron, cafona, e que também oferece uma vista panorâmica da cidade, com acesso bem mais rápido e bem mais cômodo!... Tarde demais.

 



Daí então: o pôr do sol!... Um espetáculo belíssimo numa cidade fantástica que começava e se iluminar!... Sim, acho que valeu a pena.



E do outro lado, vinda do leste, a lua cheia!... Sim, valeu muito a pena.


Quando já estava praticamente escuro e não dava mais para fotografar direito, cedi aos apelos dos pés doloridos para ir embora. Pelo menos para descer quase não havia fila, "quase"...  estava tarde e a maioria das pessoas já tinha partido. Mesmo assim levei uns 15 minutos na descida!


Cheguei ao solo quando já era noite fechada, e como já passava das 22h, fui direto para o metrô pois não mais barco para o trajeto de volta. Só que a estação de metrô mais proxima ficava abaixo da Praça dos Inválidos, a exatos 2,5 km de distância!... Meus pés estavam além da exaustão, e caminhar até lá certamente me deixaria inválido. Não tive alternativa: fui pela estrada a fora, bem sozinho, tiritando de frio, coxeando, fantasiado de rapper, afugentando os passantes, etc. E quando enfim cheguei no hotel capotei num sono tão pesado que nem sonhei. Mas também, quem precisa sonhar a noite quando passou o dia inteiro num deslumbre só?  

sábado, 12 de março de 2011

Navegar é preciso...

Então, abri os olhos, era sábado, e eu não estava no meu quarto. Uma coisa é você acordar, outra coisa, muito diferente, é você acordar em Paris. Com efeito, acordei com aquela sensação de alegria e estranheza. Esperava que fosse assim, pois é sempre assim. Acho que foi Fernando Pessoa que disse: Até ontem acordava sem sensação nenhuma; acordava. Agora tenho alegria e estranheza porque não mais acordo do sonho, simplesmente acordo no sonho!... Comigo, naquela manhã, foi exatamente isso: o Odéon, o Cour de Saint André, os crêpes, a Notre-Dame, toda Paris estavam ali – eu estava neles. Esfreguei os olhos para constatar aquela alegre e estrangeira manhã de sábado. E ainda pensando em Fernando Pessoa, recitei: não sei o que hei fazer das minhas sensações. Não sei sequer o que hei de ser comigo sozinho.

Mas uma coisa eu sabia: naquela manhã, eu precisava, urgentemente, ir até Gare de Saint-Làzare, no escritório da Eurail, para validar meus passes de trem e fazer reservas de assento, dia e horário de todas as viagens posteriores. E depois... bem, depois eu vagaria a esmo, pegaria um mapa e, como autêntico flâneur, perambularia sem destino, perdendo-se e achando-se, vendo e vivendo Paris bem de perto. Fui...

A gare de Saint-Làzare ficava na Rive Droite, isto é, no lado direito do Sena, depois da Île de la Citè, depois da Saint-Chapelle, depois do Louvre, depois da Place Vêndome, depois da Ópera... Com tantos monumentos pelo caminho decidi ir a pé. E fiz bem. O clima estava espetacular, gélido, nublado, ventando, mas sem possibilidades de chuva, ou seja, uma típica manhã de outono em Paris!... Minhas roupas é que não estavam nada adequadas ao frio daquela estação e tampouco à elegância daquela cidade, mas eu só vim perceber isso depois de cruzar a Pont-Neuf. E aí já era tarde demais. Prossegui...

Saint Chapelle... eu acho! São tantas igrejas.

Place Vêndome

Ópera

Tendo resolvido tudo o que tinha para resolver no escritório da Eurail (onde, aliás, fui muito bem atendido... recomendo!), fiquei sabendo que meu passe dava direito a uma excursão no Sena pela metade do preço!... Não esperei nem mais um minuto, varei o Boulevard Haussaman, passando pelo Printemps, retornando pela Ópera, o Louvre, a Saint-Chapelle, até chegar na Rue de Rivoli onde, ao dobrar numa esquina, me deparei com o MIJE, sim o odioso MIJE!... Demorei a acreditar, mas era mesmo o albergue caloteiro (embora charmoso) que quase me deixou sem hospedagem em Paris!... Sem me conter, parti para a vingança: apertei o botão do interfone e corri!... Depois roguei pragas, maldições, desejei falência e um incêndio, mas ao lembrar o precaríssimo mafuá onde estava hospedado, logo me arrependi. Daí, perdendo-me num emaranhado de becos que se retorciam e se espremiam por traz da igreja dos gêmeos Saint-Gervais e Saint-Protais, consegui chegar ao fim da Rue de Berres e de lá no rio.



Partindo do cais, ou melhor, do Quai de’lHotel de-Ville, naveguei pelo Sena a bordo de um bateaux chamado Odèon (sincronicidade?) que me levaria até a Torre Eifell. E fui à proa do barco... ou seria a popa?... bem, fui atrás, de pé, fotografando tudo, deslumbrado com tudo.






Era o cartão postal num zoom de realidade: palacetes e museus, igrejas e teatros, castanheiros e plátanos, amantes enamorados e pintores amadores, camelôs e ciganos, estátuas e pontes monumentais!... Vi pessoas entrando e saindo de túneis, subindo e descendo escadarias, vi mendigos que dormiam envoltos em mantas encardidas e, di-lo-ia Fernando Pessoa, pareciam pedras à beira do rio. Vi tudo e admirei-me de tudo. Enquanto isso, ao longe, a torre se aproximava...


Em Paris, no Sena, navegar é, realmente, preciso.

sábado, 5 de março de 2011

Breve passeio pelo tempo

Eu precisava me refazer de tantos choques, digamos, culturais. E como ainda era cedo, decidi dar uma volta pelo quartier, e jantar fora, literalmente, na calçada de algum bistrô, tomando um copo de vinho só para entrar no clima da cidade. E fui. Por motivos óbvios, escolhi o lendário Café Le Procope, que era o mais antigo de Paris – freqüentado por Molière, Voltaire, Racine, Diderot, Balzac, Victor Hugo, George Sand, Oscar Wilde – e ficava praticamente em frente ao meu hotel!... Da janela do meu quarto eu podia ver toda a movimentação do café, e um detalhe pitoresco logo me chamou a atenção: no Le Procope não havia mesas na calçada, melhor do que isso, elas ficavam nas sacadas. Meu jantar de boas-vindas seria então em grande estilo!


Seria... Se eu tivesse feito reservas com uma semana de antecedência! Foi o que me informou o atencioso Mahmoud, depois de ligar para o café e procurar saber da disponibilidade das mesas. A propósito, segundo Mahmoud, numa noite de sexta-feira seria praticamente impossível encontrar vagas, assim de última hora, em qualquer restaurante famoso de Paris. Não obstante, eu poderia ter um  jantar decente nos muitos bistrôs da vizinhança. Bastava procurar. Portanto:  - En avant, marche!    


Foi assim que há poucos passos do Le Procope vislumbrei uma passagem em forma de túnel que dava para um pátio bastante movimentado. Era o Cour du Commerce Saint Andrè, um beco estreito, comprido, sinuoso, onde a Paris medieval resguarda importantes vestígios de sua História, em meio a muitos bares, restaurantes e cafés. De cara, fui atraído pelo "Bistrô 1900", charmosérrimo, aconchegante, com menu interessante e um preço razoável, mas estava lotado. Mais adiante vi os fundos, ou melhor, a antiga entrada do Le Procope, também lotado!


O beco era longo e a certa altura se bifurcava em três vias, uma que dava para a Rue Saint André, outra que desembocava no boulevard Saint German, e a terceira que terminava numa parede sem saída. Em contraste com as duas primeiras, essa terceira via era um ermo. Mas foi aí que encontrei o único lugar disponível para jantar. Não era exatamente um café ou bistrô – não tinha nenhuma tabuleta mencionando o tipo de estabelecimento, nem mesmo o nome – mais parecia uma lanchonete, minúscula, e cuja especialidade era crepe e sanduíche. Mas como tinha vinho, fiquei.


Uma lanchonete deserta numa viela movimentada, naturalmente, desperta nossa suspicácia. Mas se o cheiro dos crepes são tão melífluos como os que lá eram preparados, a fome sobrepuja a desconfiança e você se arrisca. Interessante era que a proprietária parecia não se importar com a impopularidade. A bem da verdade, não dava a mínima. Como depois fiquei sabendo, ela era uma professora aposentada, que tinha naquilo um passatempo, um lenitivo para o tédio, e que tédio! – uma plaquinha atrás do balcão dizia: “Não se preocupe com a vida... você não sairá dela vivo!...” Cinismo espirituoso.     


Apesar de entediada e cínica, ela era excelente cozinheira e provavelmente uma boa professora. Enquanto preparava um apetitoso crêpe  salèes de viande et fromage, ela me contou toda a história daquele lugar. Começou falando da parede que fechava a rua: tratava-se do único remanescente da muralha do rei Philippe-Auguste, datada do século X, e cujo extenso fosso era hoje o Boulevard Saint German!... Aquela lanchonete ficava junto ao "pas de mule", uma passagem que servia aos tropeiros que vinham às feiras de Paris, e a pedra onde eu estava sentado era uma montoir, um bloco usado para ajudar as pessoas a montar seus cavalos. Dobrando e recheando a massa com a finura metodológica de um Michelet, ela apontou a casa da frente e disse que Sainte-Beuve vivera ali por 10 anos, na de número 2; enquanto Marat tinha a sede do seu jornal revolucionário, "L'ami du Peulple", no número 8. E não parava por aí: o Dr. Guillotin, mantinha uma oficina-abatedouro de ovelhas, no número 9, e foi lá que ele inventou a guilhotina!... Ou seja, eu estava esperando para comer um crepe no berço da revolução francesa.

Coincidência ou sugestão, quando o crepe ficou pronto notei que tinha gosto de carne de ovelha. Pedi que embrulhasse para viagem, pois fazia muito frio, já estava escuro e meus pés não suportavam mais um minuto aquelas botas. Comprei uma garrafinha de vinho e outra de água, deixando o troco como retribuição pela aula. Foi então que ela me convidou  para as sessões gratuitas de cinema que seu marido promovia no Cour de Rohan, outro pátio secreto, contíguo àquele, e cujo acesso era feito através de um portão na muralha medieval que até então eu não tinha percebido. Agradeci por tudo e voltei ao hotel pensando em quão fabulosa é Paris: você sai para comprar um lanchezinho qualquer,  num passeio rápido, breve, e quando dá por si já percorreu, pelo menos, dois séculos de história. E isso era só o começo.