sábado, 5 de março de 2011

Breve passeio pelo tempo

Eu precisava me refazer de tantos choques, digamos, culturais. E como ainda era cedo, decidi dar uma volta pelo quartier, e jantar fora, literalmente, na calçada de algum bistrô, tomando um copo de vinho só para entrar no clima da cidade. E fui. Por motivos óbvios, escolhi o lendário Café Le Procope, que era o mais antigo de Paris – freqüentado por Molière, Voltaire, Racine, Diderot, Balzac, Victor Hugo, George Sand, Oscar Wilde – e ficava praticamente em frente ao meu hotel!... Da janela do meu quarto eu podia ver toda a movimentação do café, e um detalhe pitoresco logo me chamou a atenção: no Le Procope não havia mesas na calçada, melhor do que isso, elas ficavam nas sacadas. Meu jantar de boas-vindas seria então em grande estilo!


Seria... Se eu tivesse feito reservas com uma semana de antecedência! Foi o que me informou o atencioso Mahmoud, depois de ligar para o café e procurar saber da disponibilidade das mesas. A propósito, segundo Mahmoud, numa noite de sexta-feira seria praticamente impossível encontrar vagas, assim de última hora, em qualquer restaurante famoso de Paris. Não obstante, eu poderia ter um  jantar decente nos muitos bistrôs da vizinhança. Bastava procurar. Portanto:  - En avant, marche!    


Foi assim que há poucos passos do Le Procope vislumbrei uma passagem em forma de túnel que dava para um pátio bastante movimentado. Era o Cour du Commerce Saint Andrè, um beco estreito, comprido, sinuoso, onde a Paris medieval resguarda importantes vestígios de sua História, em meio a muitos bares, restaurantes e cafés. De cara, fui atraído pelo "Bistrô 1900", charmosérrimo, aconchegante, com menu interessante e um preço razoável, mas estava lotado. Mais adiante vi os fundos, ou melhor, a antiga entrada do Le Procope, também lotado!


O beco era longo e a certa altura se bifurcava em três vias, uma que dava para a Rue Saint André, outra que desembocava no boulevard Saint German, e a terceira que terminava numa parede sem saída. Em contraste com as duas primeiras, essa terceira via era um ermo. Mas foi aí que encontrei o único lugar disponível para jantar. Não era exatamente um café ou bistrô – não tinha nenhuma tabuleta mencionando o tipo de estabelecimento, nem mesmo o nome – mais parecia uma lanchonete, minúscula, e cuja especialidade era crepe e sanduíche. Mas como tinha vinho, fiquei.


Uma lanchonete deserta numa viela movimentada, naturalmente, desperta nossa suspicácia. Mas se o cheiro dos crepes são tão melífluos como os que lá eram preparados, a fome sobrepuja a desconfiança e você se arrisca. Interessante era que a proprietária parecia não se importar com a impopularidade. A bem da verdade, não dava a mínima. Como depois fiquei sabendo, ela era uma professora aposentada, que tinha naquilo um passatempo, um lenitivo para o tédio, e que tédio! – uma plaquinha atrás do balcão dizia: “Não se preocupe com a vida... você não sairá dela vivo!...” Cinismo espirituoso.     


Apesar de entediada e cínica, ela era excelente cozinheira e provavelmente uma boa professora. Enquanto preparava um apetitoso crêpe  salèes de viande et fromage, ela me contou toda a história daquele lugar. Começou falando da parede que fechava a rua: tratava-se do único remanescente da muralha do rei Philippe-Auguste, datada do século X, e cujo extenso fosso era hoje o Boulevard Saint German!... Aquela lanchonete ficava junto ao "pas de mule", uma passagem que servia aos tropeiros que vinham às feiras de Paris, e a pedra onde eu estava sentado era uma montoir, um bloco usado para ajudar as pessoas a montar seus cavalos. Dobrando e recheando a massa com a finura metodológica de um Michelet, ela apontou a casa da frente e disse que Sainte-Beuve vivera ali por 10 anos, na de número 2; enquanto Marat tinha a sede do seu jornal revolucionário, "L'ami du Peulple", no número 8. E não parava por aí: o Dr. Guillotin, mantinha uma oficina-abatedouro de ovelhas, no número 9, e foi lá que ele inventou a guilhotina!... Ou seja, eu estava esperando para comer um crepe no berço da revolução francesa.

Coincidência ou sugestão, quando o crepe ficou pronto notei que tinha gosto de carne de ovelha. Pedi que embrulhasse para viagem, pois fazia muito frio, já estava escuro e meus pés não suportavam mais um minuto aquelas botas. Comprei uma garrafinha de vinho e outra de água, deixando o troco como retribuição pela aula. Foi então que ela me convidou  para as sessões gratuitas de cinema que seu marido promovia no Cour de Rohan, outro pátio secreto, contíguo àquele, e cujo acesso era feito através de um portão na muralha medieval que até então eu não tinha percebido. Agradeci por tudo e voltei ao hotel pensando em quão fabulosa é Paris: você sai para comprar um lanchezinho qualquer,  num passeio rápido, breve, e quando dá por si já percorreu, pelo menos, dois séculos de história. E isso era só o começo.

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