quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A Chegada

 Então procurei me abstrair da dor tentando ficar preocupado com algua coisa, e não foi difícil. Primeiramente, minha mochila demorou quase meia hora para aparecer na esteira de bagagens – de imediato um calafrio me fez perder a sensibilidade dos pés: extravio!... Não, ufa!... Eis que a mochila aparece, e quando já entardecia. Então corri para o saguão do aeroporto de Orly e procurei me informar onde podia pegar o trem para Paris: mais além, bem além... Continuei correndo, Orly é menor do que o Charles de Gaulle, mas isso não significa que seja pequeno. A noite se aproximava. Passados quinze minutos, alcancei o guichê, comprei o bilhete e descambei pelas escadarias que davam acesso à Gare d’Orly. Uma moça negra, visivelmente apressada, me abordou para perguntar como ela poderia chegar à estação de Antony: - É o que eu também gostaria de saber!... Antony é a cidadezinha que fica no meio dos 14 km que separam o aeroporto de Orly da capital Paris, passagem obrigatória. Preocupado com o horário, entrei no único trem que vi estacionado, um trem curto, estreito como um bonde, e lá a mesma moça, que havia se adiantado a mim, já estava perguntando aos poucos passageiros se aquele era o trem para Antony. Ninguém sabia ao certo, todos olharam para o teto onde havia um esquema do circuito a ser percorrido, Antony aparecia como um pontinho branco sobre o qual confluíam diversas linhas coloridas.

Mas qual seria a cor da nossa linha? Também ninguém sabia, e todos se entreolharam apreensivos, pois assim como nós, aparentemente, todos eram turistas recém-chegados. E não havia mais a quem perguntar, porque o trem era automático, movia-se sem condutores. A porta ia se fechar, tínhamos que nos decidir, fica ou saltar. A moça saltou. A porta se fechou. E eu fiquei, imobilizado pela incerteza e a dor nos pés. Foi então que, lá do fundo do vagão, alguém disse que aquele trem só fazia a linha Orly-Antony, não havia com que se preocupar. Era uma senhora simpática, elegante, avó de cabelos brancos, de seus 70 anos, cercada por três garotinhos em escadinha de quatro a seis anos, e eram tão parecidos que não havia a menor dúvida de que fossem irmãos. Eles me olhavam sorridentes, com aquela cara de criança que quer fazer pergunta. A simpática senhora sorria também, olhando para o meu mochilão. Voltei a examinar o esquema acima da porta para ver onde o circuito terminaria. As crianças se mexiam, a avó recomendava que se dessem as mãos para se equilibrarem melhor. Depois se dirigiu a mim perguntando qual meu destino:

- Odéon, Paris.

- Ah, terá que fazer duas conexões... – disse ela – ...uma em Antony e outra na Denfert-Rochereau, a primeira gare de Paris.

Olhei atentamente para o esquema e localizei as estações mencionadas, depois me virei para ela e agradeci a informação. Então as crianças se mexeram inquietas e uma delas tentou se levantar, mas a avó puxou-a dizendo que -"Non!"- e zapt, lascou-lhe um tapa na cara na frente de todo mundo. O tapa foi estalado, mas o garoto não deu um pio. Nem ninguém ali no vagão. Stendhal dizia que são de momentos como este, de singela truculência familiar, que surge um Robespierre!... Já levei cascudos, beliscões, mas um tapa nunca, ainda menos em público. Foi um segundo só, a senhora, na sequência, olhou pra mim com o mesmo sorriso finíssimo, a mesma voz inalterada: - "N’a pas de quoi!...” Não lembro se consegui esboçar um sorriso. Mas ela, sempre prestativa, continuou: -"Em Antony pegue a linha ‘rouge’ que vai para Denfert-Rochereau, e de lá a ‘linha 4’ que segue para a Notre-Dame passando pelo Odéon”. Agradeci novamente, mas com o entusiasmo de quem fala a um psicopata, e passei para o outro vagão onde vi um assento livre. Quando o trem parou em Antony, saltamos, e mais uma vez a velhinha fez a gentileza de me indicar a plataforma onde deveria esperar a linha rouge.

- Bienvenue!... Disse-me ela por fim, e se foi com seus adoráveis netinhos.

- Bienvenue!... ficou o eco.


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