sábado, 21 de janeiro de 2012

A Cidade Invisível

Paris é uma cidade da qual se pode falar no plural, porque há duas parises: uma é a Paris luminosa e romântica da Torre Eiffel, do Sena, da Champs Elyseé, uma das maiores cidades da Europa e a mais visitada do mundo. E a outra é a Paris invisível e sombria das catacumbas, o labirinto underground de mais de 290 km de extensão, verdadeira megalópole subterrânea, tão populosa quanto a superfície, porém proibida ao trânsito dos vivos. E eu, que ainda há pouco, quase roçava o céu do alto da catedral de Chartres, retornava a Paris disposto a me precipitar naquela misteriosa necrópole.



Abaixo de cada avenida, rua ou beco de Paris serpenteiam tuneis paralelos, cujo acesso só é possível pelo metrô, pelos esgotos ou pelos pequenos mausoléus públicos. Essa "sub-urbe" que fascina e repele é igualmente secular como sua irmã gêmea, muito embora custodie solitariamente os segredos e os esqueletos de mais de seis milhões de mortais - testemunhas da antiga Gália-Romana, das medievais dinastias merovíngias e carolíngias, das vítimas da Peste Negra, da Revolução Francesa e da ocupação nazista. E conquanto esteja quase toda interditada à visitação, alguns trechos dessa cidade às avessas são franqueados aos curiosos que não resistem ao gosto mórbido de ver como são suas ruas de silêncio e esquecimento. Para isso basta pagar 3 euros e descer por um buraco cujo fundo nevoento emana uma luz esverdeada. Bem sugestivo!...


Antes de descer o atendente do guichê foi logo avisando que o passeio deveria ser reconsiderado caso eu sofresse de claustrofobia ou mesmo de rinite alérgica, e completou dizendo que em caso de uma crise cardíaca ou pânico o socorro demoraria a aparecer. Isso porque não há nenhum guia para acompanhar os curiosos, e  nem sequer espera-se formar grupos, é só chegar e entrar, como no meu caso, sozinho!... E o tour duraria no mínimo uma hora!... Eu tive vontade de saber se, por acaso, alguém havia morrido nestes passeios, porém me limitei a perguntar se já havia algum outro turista lá embaixo. Ele disse que sim, alguns jovens americanos tinham descido há mais ou menos dez minutos, talvez eu pudesse alcançá-los... Corri!


Descendo, literalmente, até o fundo do poço, eu me deparei com um túnel cumprido, muito cumprido, que perpassava diversas galerias até alcançar a porta nada convidativa das catacumbas. Detalhe: é possível perceber que a maior parte desta trilha mantem-se num declive, ou seja, você vai descendo mais e mais.


E a partir daquela entrada sinistra a luminosidade vai ficando mais escassa, talvez propositalmente. Logo, comecei a disparar o flash da câmera fotográfica, e não só para poder enxergar melhor, mas também para atenuar a ansiedade. Dos americanos, nem sinal!... As catacumbas eram mais frias e úmidas do que eu havia imaginado. O silêncio era quase tão denso quanto a penumbra, ouvia-se apenas o ruído de goteiras que volta e meia surpreendiam atingindo-me na cabeça. Mas susto mesmo eu tive quando a terra estremeceu com a passagem dos metrôs, que sacudiam aquelas pedras enormes e davam a impressão que tudo ia desabar.  Misericórdia!...



Para piorar, eu percebi que o teto do túnel estava ficando mais baixo. A certa altura da caminhada cogitei que talvez estivesse seguindo por uma trilha errada, pois já havia transcorrido mais de 25 minutos e nem sinal do esqueletos, e tampouco dos turistas americanos. Barulho mesmo só o dos meus passos, do teto gotejante e do rugido do metrô, que agora estava ficando mais longe. Foi então que começaram a aparecer algumas ossadas preenchendo as brechas do pedregulhos.


E alguns metros mais adiante as paredes rochosas desapareciam completamente sob o medonho reboco de tíbias e crânios.


Não bastasse o frio e a umidade, tudo agora rescendia a mofo e a caliça. E aqui e ali apareciam placas informando a data e a procedência dos ossos. Outras diziam sob qual rua de paris passava aquele túnel.



Mas a frente os tuneis iam se expandindo e dando acesso a galerias e criptas que mais pareciam cenários de um conto de Lovecraft. 




  As coisas estavam ficando mais claras, a palavra sortie já começava a aparecer, e eu, por conseguinte, ficava mais tranquilo... Fiz até pose com os defuntos!


Uma das placas dizia: um dia seremos todos iguais, portanto aproveites enquanto ainda és diferente!


Mas eis que comecei a ouvir vozes e ver sombras!... Fantasmas?! Não. Eram os turistas americanos que eu enfim alcançava. Mas agora já não importava tanto porque o passeio estava acabando.


Aliás, as catacumbas haviam acabado, mas não o passeio, pois até chegar à saída tivemos que caminhar por um bom tempo pelos esgotos de Paris.



Era fedido e bem mais úmido do que as catacumbas. Eu tinha a impressão que toda a minha roupa estava impregnada por germes e bactérias. Tive vontade de correr ou andar mais rápido, mas como isso não seria uma coisa muito prudente devido o chão escorregadio. Com efeito, prossegui devagarinho, me esquivando da água suspeita que aqui e acolá pingavam dos canos do teto. Eca!... Mas, felizmente, isso não durou muito,  daí a pouco estávamos numa galeria seca e imensa que, segundo o comentário de uma passante, era um bunker que durante a Segunda Guerra Mundial tinha servido aos soldados da resistência.



Outro passante discordou dizendo que aquilo mais parecia uma antiga cave de vinhos. Uma mulher então interveio observando que ninguém faria uma cave dentro do esgoto!... Outra ponderou dizendo que uma coisa não inviabilizava a outra, de modo que poderia ter sido cave e bunker ao mesmo tempo!... Bem, fosse o que fosse, eu só sabia de uma coisa, que a escada de saída estava bem a minha frente e eu não aguentava ficar naquele buraco nem mais um minuto. Sentia-me imundo, precisando urgentemente de uma ducha quente e bem demorada. Parti!...


sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Chartres

A manhã do dia seguinte foi praticamente um déjà vu da manhã anterior: chovia e eu novamente estava indo à estação de Montparnasse pegar outro trem rumo a um passado, que também ficava ao norte da França, mas não tão longe (nem tão medieval) quanto o Mont Saint Michel. Seriam apenas quarenta minutos de viagem... Seria para Chartres. E o tempo gasto poderia ser ainda menor se o trajeto fosse percorrido num confortável TGV. Mas para Chartres só há trens de velocidade normal, que nem por isso deixam de ser confortáveis, e ainda permitem uma contemplação mais cuidadosa da paisagem...




Estávamos cruzando uma planície quase inteiramente descampada, na qual, por vezes, aqui e ali, apareciam chalés, moinhos, solitárias igrejas rurais e as lavouras de trigais que compõem o Vale de Beauce. Lembrei então que Rabelais dizia ter existido naquele lugar uma imensa floresta, que depois foi implacavelmente devastada pela passagem dos cavalos de Pantagruel, que com o lento balanço de suas caudas titânicas, num único dia, varreram todas as árvores!... Verdade é que sobraram alguns bosques, poucos, compactos, que espocavam intermitentes como ramalhetes de árvores em meio ao gramado infinito. E assim decorria a paisagem até que, subitamente, o trem entrava na cidade, tudo se transformava em ruas, e do alto de uma colina, aparecia a intrigante Catedral de Chartres.     




A estação de Chartres fica a poucos passos da Catedral e é possível chegar até ela guiando-se apenas pelas torres que, como tudo naquela misteriosa igreja, são completamente diferentes uma da outra, quer seja no formato quer na altura. Datada do século XIII, aquela obra prima da arte gótica (que estava passando por reformas) era cheia de peculiaridades arquitetônicas porque, além de igreja, era também um calendário rigorosamente projetado para anunciar, através de sinais de luz e sombra, as alternâncias de solstícios e equinócios... Não à toa havia relógios e signos zodiacais por todos os lados.



Embora isso já caracterizasse um bom motivo para uma visita àquela catedral, outro era o propósito que me trazia ali: a secular missa de recomendação dos peregrinos!... Chartres é um dos entrepostos mais tradicionais e importantes do caminho francês para Compostela; com efeito, nas ruas e becos mais antigos da cidade ainda é possível encontrar alguns "index" da rota. Basta olhar atentamente onde pisa, e daí prosseguir acompanhando os sinais que conduzem exatamente aonde é preciso ir: até a casa paroquial onde se carimba a credencial de peregrino. 



   
A casa paroquial fica exatamente ao lado da Catedral. Lá fui acolhido por uma moça elegantérrima, muito solícita, que além de carimbar a credencial e me oferecer dois mapas detalhados da catedral e da cidade,  ainda me deu dicas sobre os horários de funcionamento dos museus, parques, monumentos, etc. Ela me informou também que, embora estivesse passando por reformas, a igreja estava aberta à visitação. E la fui eu.   



Antes de entrar, porém, eu decidi descansar um pouco na escadaria da catedral. Foi então que, inspirando-me naquela tela de Van Gogh, mencionada no início do blog, tive a ideia de fazer uma homenagem às minhas terríveis botas de trekking, fotografando-as contra o canário ao redor. Seria a primeira de muitas fotografias, no melhor estilo gnomo-de-Amelie-Poulain.     


E qual não foi a minha surpresa quando, no momento do clic, deparei-me com o lendário café Le Serpente, o restaurante mais antigo de Chartres ainda em funcionamento. Parada obrigatória para o petit dejéuner, que até então eu não havia tomado!... E a vista da catedral e do centro da cidade não poderia ser melhor.  



Um xícara de café bem quentinho e um saboroso croissant de chocolate são dois requisitos indispensáveis para quem pretende se aventurar pela Catedral de Chartres, pois uma vez lá dentro perde-se fácil e totalmente a noção de tempo e de realidade extra-muros!... Pelo menos comigo foi assim.



Não sei dizer precisamente o que nos hipnotiza. À primeira vista, logo quando se entra, a Catedral parece escura como uma floresta, onde a pouca luz coada pelo vitrais prende imediatamente a nossa atenção numa legenda estática, onde se vislumbra o heróis da fé e da caridade que ao longo do tempo vão constituindo a verdadeira elite espiritual da Igreja. Em contraste com esses seres imoveis em sua eternidade beatífica, aparecem os sinais do Tempo, com anjos sustentando enormes zodíacos que demarcam anos, meses, semanas, dias, estações, festas litúrgicas e horas canônicas.   


Mais adiante, quando os olhos se acostumam à penumbra, vislumbra-se as pilastras gigantescas que se erguem como sequoias milenares, sustentando todo o peso daquele templo.


Então, quando menos se espera, você se dá conta que está no meio de um mosaico imenso que se expande pelo chão formando um fascinante labirinto circular. Trata-se de um símbolo para a mística da fé, uma metáfora da peregrinação terrena do ser humano no intuito de sair do tempo e entrar na eternidade, de comungar com a divindade de Cristo. Um símbolo de um processo lento, que geralmente dura a vida, e que chamamos  de conversão.

 

Eu vi um senhor rezar o terço enquanto percorria o labirinto, e decidi fazer o mesmo. Era dia de contemplação dos mistérios luminosos. A cada conta dedilhada avançávamos três passos. O interessante é que, ao contrários dos demais, este labirinto só tem um caminho a seguir (numa alusão óbvia à pessoa de Cristo), de modo que a meta será sempre alcançada. Curiosamente, o trajeto é tão bem delineado que ora estamos muitos próximos de centro, e ora estamos completamente afastados, denotando neste vai e vem a inconstância de nossa vivência espiritual, a vulnerabilidade de nossa alma que sempre precisa do subsídio da Graça!...  Quando enfim se atinge o centro do labirinto, a primeira coisa que nos deparamos é com uma das portas que fica no transepto lateral da nave, e onde há uma escada em espiral que nos conduz ao pináculo mais alto da catedral.  O céu era o limite! Fui...


A subida não é nada fácil, na verdade é horrível, pois a escada é tão estreita quanto cumprida, com degraus onde mal cabem os dois pés e que são um tanto escorregadios. Além disso, o trajeto é de uma sinuosidade tão apertada que a certa altura você sente que a sua coluna está ficando tão retorcida quanto ele. Definitivamente, uma aventura imprópria para quem sofre de problemas cardíacos, artrose, reumatismo ou de uma simples labirintite!... Vai ver o sacristão Quasimodo de Notre Dame ficou corcunda de tanto percorrer esse tipo de escada.   


Mas há de se convir que o sacrifício vale a pena...





Quando desci já era quase meio dia e a missa estava para começar. Naquela manhã eu era o único peregrino presente na igreja, e um dos poucos turistas que ficaram para a missa. Tanto melhor, pois fui objeto de toda a atenção, e o padre logo me requisitou para auxiliá-lo na celebração. Depois fui almoçar num restaurante que fica nos jardins por trás da Catedral... Belos jardins, diga-se de passagem, mas o restaurante estava fechado!... Fiz algumas fotos e voltei para almoçar no café Le Serpente.




Por fim, corri direto para a estação para pegar o trem das 14h. Claro que havia ainda muita coisa para ver e fazer em Chartres, mas o meu tempo era curtíssimo, e uma aventura ainda melhor me aguardava em Paris.