domingo, 9 de outubro de 2011

Um Trem para a Idade Média

Chovia fino e ainda estava muito escuro quando acordei, mas já eram seis horas da manhã. O frio e o sono me desencorajavam a sair da cama, mas eu não estava ali para dormir... Naquele dia eu faria uma viagem de três horas e meia rumo ao extremo norte da França, para conhecer o lendário Mont Saint Michel – um dos pontos altos de minha aventura – onde obteria o primeiro carimbo para a minha credencial de peregrino. Para dar sorte, decidi pegar o metrô num lugar homônimo, a Place Saint Michel, que ficava a poucos passos do hotel. E funcionou, pois mal pisei na praça e logo a chuva estiou. Dali, fui até a estação de Montparnasse, da qual parti num trem de alta velocidade em direção à região dos sonhos. 


Sempre fui fascinado por trens, e como aquele seria o meu primeiro passeio de TGV, providenciei para que tudo fosse feito em grande estilo: reservei um assento na primeira classe e resolvi que tomaria o café da manhã no decorrer da viagem. Resolução, aliás, prudentíssima, pois o serviço superou minhas expectativas, tudo absolutamente confortável, organizado, cronometrado, saboroso... O café era perfumado e revigorante; os pães, queijos e geléias não eram desse mundo... Se fosse permitido, eu teria acendido um cigarro!... Estava empolgadíssimo, sentindo-me um autêntico personagem de Graham Green. 


Transcorridas duas horas e dez minutos, o dia enfim amanheceu e o trem parou numa vilazinha no meio do nada, chamada Dol-de-Bretagne, onde eu fui o único passageiro a descer. O vento era glacial, e a estação, ou melhor, a vila inteira parecia abandonada. Era um lugar tão ermo e frio que quando eu espirrava fazia eco!... Não obstante, segundo o folheto informativo distribuído no trem, seria ali mesmo, em meio àquela desolação, que eu deveria pegar um ônibus rumo à orla do Canal da Mancha, onde fica o Mont Saint Michel, que na verdade é uma ilha. E de fato, conforme o predito, o ônibus já lá estava, do lado de fora da estação, juntamente com o condutor que se aquecia com um copo de café tão cumprido e fumegante quanto uma chaminé. Depois de me saudar, ainda visivelmente sonolento, ele começou a recitar, num automatismo de robô, as mais variadas informações turísticas: deu dicas sobre os horários dos ônibus e das marés, sobre os melhores restaurantes e pratos da ilha, e por fim comentou sobre o tempo dizendo que invariavelmente era ruim, chuvoso... Muito embora – na opinião dele – aquele dia estivesse até ameno, nem chovia tanto e a temperatura parecia agradável... Não para os meus padrões tropicais: a brisa gélida fazia meu rosto arder!  


Como não apareceu mais ninguém, embarcamos. O trajeto até orla durou uns trinta minutos. No caminho, vi moinhos e chalés charmosos, mas tudo muito solitário, afastado. Depois o litoral começou a aparecer, com o mar e o céu formando uma só massa gris. Na tentativa de puxar conversa com o motorista, perguntei se, por acaso, estávamos próximos da praia onde aconteceu o famoso desembarque do Dia D... Tal pergunta, porém, me valeu um daqueles momentos folcloricamente franceses pelo qual todo visitante passa, mais cedo ou tarde, quando revela ignorância das tradições, do protocolo ou, simplesmente, da geografia local: Desprezo!... Expresso inicialmente pelas sobrancelhas, em seguida por um suspiro e finalmente pelo tom da voz:

- Aqui é a Bretanha, não é a Normandia!

- Ah, ta!...


Recolhi-me amuado. Mas então eis que, de súbito, numa curva do caminho, comecei a vislumbrar a silhueta do Mont Saint Michel surgindo lentamente em meio à bruma; era uma ilha rochosa, ereta, adunca... 


Lembra de Morgana dissipando a neblina de Avalon para onde conduzia o corpo de Arthur? Não lembra? Resultado de não ler Tennyson!... Pois era exatamente assim. Fenomenal... Mesmo sem enxergar nitidamente, era coisa para ficar de boca aberta todo um longo dia de outono, até a maresia cariar os dentes!!!... Fe-no-me-nal. 


Fui deixado na entrada da ilha, cujo acesso era feito por uma ponte levadiça. E quanto mais a bruma se esvaía, mais a admiração aumentava. A Idade Média estava ali na íntegra, majestosamente ilesa, desafiando o Mar, o Tempo e a História. De imediato, fui ao Office de Turisme para conseguir um mapa mais detalhado do que aquele que o motorista do ônibus me dera. Mais detalhado eles não tinham, e depois entendi o porquê: não tem o que detalhar! É tudo minúsculo, impossível de se perder. Tanto melhor!... 



Depois de três horas sentado, estava doido para andar, e no Mont Saint Michel isso é coisa que se faz vagarosamente. O passeio consiste basicamente em subir pela rua principal, que conduz ao cume da ilha, e depois descer pela muralha que a contorna. Um trajeto curto, mas que demanda quase um dia inteiro, pois são tantas lojas, livrarias, restaurantes e museus particulares que a vontade de xeretar torna-se descontroladamente impulsiva. Fui então subindo em meio à multidão de turistas asiáticos que ali estavam hospedados, lotando os hotéis, formando praticamente um segundo contingente demográfico!... Se não fosse pela arquitetura gótica, pelos motivos cristãos de estilo celta e bretão, eu poderia jurar que não estava na Europa, mas em alguma aldeia montanhosa da cordilheira do Himalaia. 






No meio do caminho íngreme, encontrei a Église Paroissiale de Saint Jeane D'Arc, onde a missa iria começar: Pit stop espiritual imprescindível... 


As igrejas locais eram mantidas pelos monges e freiras da milenar Ordem de Jerusalém, todos altos e loiros como seus ancestrais vikings e todos de hábitos azuis. Concluída a missa, prossegui na caminhada até chegar à última casa-loja da rua e começar a escadaria que conduzia à magnífica Abadia de Sant Michel: a imensa e pontuda cereja do bolo!... A cada passo da subida, eu ficava pensando no quanto a fé é capaz não só de mover as montanhas, mas de transformá-las em templos belíssimos. E haja escada!... 


O cansaço, porém, cedia lugar ao fascínio, que provavelmente foi igual ao de Adso de Melk, quando se deparou com o abissal mosteiro do romance “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco. Se o edifício parecia gigantesco visto de fora, por dentro era então um microcosmos labiríntico de salas e corredores, celas, capelas, jardins internos e mirantes maravilhosos. Eu ficava imaginando quantos monges teriam construído e vivido naquele complexo imenso, já que hoje não passam de dezenove homens e vinte e seis mulheres. As impressões vinham de mistura, tudo me parecia mágico, trágico, arrebatador. Simplesmente não há como colocar tudo em palavras, e as fotos só dão uma idéia muito pálida do que realmente é aquele lugar. Todavia, prefiro que elas falem... 


















Saí de lá flutuando, com o pensamento deslocado quanto ao tempo, mas inteiramente fixado naquele espaço. Notei que tudo então estava úmido pela garoa soprada do oceano, logo tive que descer a muralha com cuidado para não escorregar. No trajeto, reparei que suas remparts formavam um tipo de atalho que conduzia diretamente à porta da ilha. Além disso, a muralha delimitava a parte habitável da vila com o precipício que dava para o mar, e cuja vista da baía é deslumbrante. 




 Fui descendo e pensando no almoço, quando vi um restaurante de frutos do mar lotado, mas com uma mesa ainda vaga. Entrei e fiquei fascinado com os mariscos descomunais que eram servidos!... Era ali mesmo que eu comeria. Sentei e pedi o cardápio já na dúvida quanto à escolha. Mas quando abri a carta, procurando onde estavam os frutos do mar, percebi que só tinha crepe!... Como assim?! Chamei o garçom que estava me atendendo e disse que queria o menu principal. Não tem mais menu. Como não tem mais menu? Passou das 14h, disse ele... Eu protestei que eram só 14:05h. Todos a minha volta estavam comendo menu, e eu não podia mais pedir por míseros cinco minutos? Pensei em levantar e ir embora, mas me segurei, cogitando que provavelmente aconteceria a mesma coisa em qualquer outro restaurante que fosse. E do jeito que estava com fome era melhor ficar por ali mesmo. Tristemente escolhi um crepe, e aproveitei que estava na janela que dava para o mar e tentei me distrair, e não ficar olhando para as mesas dos outros. A propósito, o crepe estava até gostoso.


Depois do crepe pedi um bom copo de vinho para dar um ânimo no meu humor que havia nublado. Mas foi só sair do restaurante e olhar novamente a vista das remparts que fiquei feliz novamente!... 


Desci devagar as rampas e escadas, absorvendo o máximo de detalhes possível, até chegar outra vez na entrada da cidade. Como faltava apenas duas horas para o ônibus chegar, decidi procurar imediatamente a casa onde carimbavam a credencial dos peregrinos. 


E, para máxima tristeza dos meus pés, fui informado que era a mesma casa que ficava lá no fim da rua, junto às escadarias do mosteiro... Subindo!... 




O esforço, porém, foi muito bem recompensado, pois o casal de velhinhos, responsável pelo lugar, acolheu-me como se fosse um neto já esperado para o café, que, aliás, foi-me servido com deliciosas “tarte bretonnes aux pommes”. Simpaticíssimos, eles me interrogaram por quase quarenta minutos: queriam saber de onde eu vinha, quais os motivos da minha peregrinação, se estava sozinho... parecia o serviço de imigração! Então, depois de carimbarem a credencial, eles me levaram até uma lojinha que mantinham ao lado da casa, na qual eu comprei um ícone do anjo São Miguel, um chaveiro de pedra em forma de gárrula e um boton com a foto da ilha para colocar na mochila. Nada que pudesse pesar na bagagem e tampouco no bolso. 



Por fim, agradeci por tudo e despedi-me. Quando olhei para o relógio vi que faltavam apenas 10 minutos para o ônibus chegar. E dada sua pontualidade, achei melhor correr. Com efeito, quando alcancei a entrada da ilha já pude avistar o ônibus estacionado longe, muito longe, devido ao horário das marés que sobem repentinamente e já se faziam anunciar pela ventania. Essa caminhadinha, pelo menos, rendeu-me algumas fotos mais nítidas do Mont Saint Michel. Eram as imagens de despedida. 




 Depois disso tive que esperar pelo trem até as 19h na estação absolutamente deserta e glacial do Dol-de-Bretagne. Durante esse tempo fiquei cogitando na possibilidade de um dia largar tudo e mudar para o Mont Saint Michel... Cogito até hoje!...  Quando enfim o trem chegou, constatei que estava quase lotado, só a minha poltrona permanecia desocupada: serviço impecável. Ah, sim, por conta da hora adiantada resolvi jantar ali mesmo. Outra magnífica experiência gastronômica sobre trilhos!... E aqui fica a dica, na França, só viaje de trem. De preferência, num expresso medieval.