quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Entremundos

Contando a partir do momento em que entrei na sala de embarque do aeroporto do Recife até o instante em que o metrô me deixou no centro de Paris, transcorreram aproximadamente 24 horas.  E eu sequer dei um cochilo!... Não era medo, ansiedade ou qualquer outro tipo de comoção – tampouco a mudança de latitude, de clima ou fuso-horário. Minha insônia tinha uma causa bem mais concreta, mais simples e por isso mesmo mais sofrível: as botas de trekking!... Se a peregrinação é uma penitência, a minha teve início no minuto em que atei os cadarços. Aquelas botas (único calçado recomendado e disponível!) anatomicamente projetadas para resistir às intempéries do tempo e aos mais adversos acidentes geográficos, eram quase tão confortáveis quanto um silício. E os pés inchados pela altitude tornaram a experiência ainda mais aprazível. Claro que eu me descalcei para atenuar o sofrimento. Mas isso era mero paliativo. A dura realidade já havia se anunciado: a vaidade de não ter amaciado as botas para não estragá-las, seria paga com uma tortura cotidiana de dedos espremidos e tornozelos esfolados. Assim começou minha travessia, assim cruzei o oceano, assim fiz uma escala de cinco horas em Lisboa e assim, de olhos bem abertos, tentando disfarçar os passos mancos, cheguei a Paris!...

Numa das cartas da vasta correspondência com seu irmão Theo, o genial Van Gogh  confessa que suas velhas botas estavam se tornando um tema recorrente, quase obsessivo, em sua pintura. Mas não se tratava de fetiche, não estava expondo meros objetos, mas aquilo que julgava ser o símbolo de sua tragetória de missionário fracassado e pintor vadio. Era um testemunho dos passos por caminhos agrestes, marcados por privações,  quedas, dores e extravios - tanto no sentido literal quanto no figurado. Era um retrato de sua própria vida. E eu só me lembrei disso quando, alguns dias depois, ainda mancando, vi uma imitação desta tela, exposta na banquinha de um camelô da margem do Sena. Foi então que decidi não mais resmungar contras minhas botas, e imaginar uma maneira de prestar-lhes homenagem!... Muito embora ainda não soubesse como. 

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