sábado, 16 de abril de 2011

Shakespeare and Company


Estava eu tomado meu petit dejuné às margens do Sena, olhando a Notre Dame, conforme a praxe secular dos que ali tomam café, quando o vento frio voltou a soprar, trazendo um barulhinho bom, familiar, que vinha de algum lugar sob um letreiro amarelo e verde. Era som de chuva, de águas, de Março... Paguei a conta e fui averiguar.


Qual não seria a minha surpresa, naquela manhã de domingo, ao testemunhar a chanson fraçaise brincando lindamente de bossa nova, na voz sublime de Stacey Kent, que, de dentro de um gramofone rouco, abafado, cantava Les Eaux de Mars na porta da livraria mais lendária de Paris, quiçá da Europa, a Shakespeare and Company!... Qual não seria a sua surpresa?  


Juro que não lembrava, que não a vi, por mais que tivesse planejado visitá-la, por mais que tivesse lido e relido as memórias de sua fundadora, Sylvia Beach, e do seu mais recente apologista, Jeremy Mercer, quase passei desapercebido. Mas aquilo que os olhos não vêem os ouvidos ouvem... Oi? Nunca ouviu falar? Então deixe que lhe conte, e mostre...




A Shakespeare and Company fica bem no limite esquerdo da Rive Gauche, bastante perto do Sena para que um pedacinho de croissant chegue facilmente  a boca dos peixes que ali nadam, desde que bem arremessado por alguém que lá esteja sentado, distraído, folheando os livros que eles dispõem sobre os bancos da calçada... É claro que roubam os livros, mas eles não se importam. E este é mais um dos pitorescos detalhes da grife Shakespeare and Company.

   


A fundação desta livraria remonta à primeira década do século XX, quando uma jovem norte-americana decidiu mudar-se para Paris e abrir um salão literário onde se reuniam todos os escritores sem-eira-nem-beira que, sabe-se lá por que, haveriam de se tornar nalguns dos grandes clássicos da modernidade!... Todo mundo ia lá, de Proust a Joyce, de Colette a Hemingway, de Jean Cocteau a Samuel Beckett, de Henry Miller a Anaïs Nin, de Charles Bukowski a Julien Green, de Sartre a Simone Beauvoir , de Jorge Luis Borges a Truman Capote, cujos autógrafos e retratos lá foram deixados, em desalinho, grudados nas paredes. Mas, claro, em épocas diferentes.


Com efeito, ainda hoje, essa loja fabulosa, que preserva todas as características de antanho - sendo até administrada por uma Sylvia Beach II! - continua a atrair jovens postulantes a glória literária de todos os cantos do mundo, sem falar nos milhares de leitores e não-leitores românticos que ali vão mais por curiosidade, por uma foto, ou várias... Assim como eu!  


E não podia ser diferente. A Shakespeare and Company é simplesmente singular, um desses lugares que dão a nossa profanidade de leigo o gosto de uma iniciação. Naquele majestoso e bagunçado labirinto dos produtos do raciocínio e da imaginação, jazem entulhados, atochados, mais de 100 mil volumes, quase todos essenciais à aquisição de um pingo de cultura humana!... E sobem pelas paredes, espalham-se pelo chão. Logo na entrada notei, em ouro numa lombada verde, o nome de Lovecraft. Era pois a seção do medo. Avancei – e percorri, espantado, oito metros de ficção de terror e suspense. Depois avistei os filósofos e os seus comentadores, que revestiam toda uma parede, desde as escolas pré-socráticas até os pós-estruturalistas. Naquelas pranchas se acotovelavam mais de duzentos sistemas – e todos se contradiziam. Mais adiante sobrevinha o teatro universal, solene e imenso como uma onda de brochuras, umas grossas outras esquálidas, todas rescendendo mofo, e todas investiam contra a parede... Ésquilo, Sófocles, Ariosto, Racine, Marlowe,  Lope de Vega, Moliére, Pirandello, Shaw, Arthur Miller, até  culminar nas obras do Bardo.


Contornei esse mar e deparei-me com os romancistas, todos, encurralados, sobrepostos como terra de aluvião tapando uma escarpa milenar. Foi então que começou a escalada, passando do picaresco ao barroco, dos românticos aos realistas, dos impressionistas aos de hoje!



Essa estante subia uma escada e terminava numa janela que dava para o Quais de Montebello. Apertei as cortinas de veludo, e por trás descobri outro considerável ajuntamento de tomos, todos de religião, de teologia e exegese, que trepavam montanhosamente até os últimos vidros, obscurecendo, vedando o ar e a luz do Criador.


Mas adiante tudo rebrilhava, em marroquins claros, na seção amável dos poetas: de Homero a Dante, de Safo a Sylvia Plat, de Baudelaire a Neruda!...  E como um repouso para a alma cansada de todo aquele saber e verbosidade, sobrevinha, colorida e contígua, a literatura infantil. Ali num recanto de parede coberto de bilhetes, entre um piano e uma maquina de datilografar, eu cedi à sedução das almofadas, trinquei um biscoito, abri um exemplar de Madeline, e me deixei estar, largo e fofo, gozando todo o aconchego e boa vontade das Madames Beach – primeira e segunda.              






Sim, porque apesar do cheiro hippie de ruína e dos sonhos fracassados que impregna seu ambiente, a loja continua sendo super acolhedora, com biscoitos, chá ou café quentinho para quem quiser, com suas poltronas alcochoadas e suas camas barulhentas, entre biombos de laca verde e densas cortinas de feltro vermelho, com divãs onde os clientes sentam, deitam e rolam, lêem e dormem, sem que ninguém, absolutamente ninguém, os perturbe. E se for o caso, podem até morar na livraria, literalmente. É ou não é uma “verdadeira” lenda?


Quando saí de lá, vi Whitman saudando todos os passantes, tanto os que chegavam como os partiam, dizendo: Estrangeiro, tu que passa, nem sabe com que ardente desejo te olho!


E mademoiselle Kent ainda cantava, "Samba Saravah":

On m'a dit qu'elle venait de Bahia
Qu'elle doit son rythme et sa poésie a
Des siècles de danse et de douleurs...

domingo, 3 de abril de 2011

Memórias (e bobagens) do subsolo!


Embora faminto e batendo os dentes de frio, eu ainda fiquei um bom tempo no meio da place Notre Dame importunando os outros turistas para me ajudarem com minhas fotos (um saco!). Por sorte, encontrei, ou melhor, fui encontrado por um casal de jovens parisienses simpaticíssimos que, muito compadecidos, dispuseram-se em acabar com aquela mendicância fotográfica – que, cá pra nós, é uma das piores agruras de quem viaja sozinho. Mas então começou a ventar e chover forte, o jovem casal logo me devolveu a câmera e fugiu, e eu sem saber para onde ir, despenquei numa escadaria que julgava ser uma entrada do metrô, mas, para minha grande surpresa, era o acesso da Cripta Arqueológica de Paris.



Felizmente o lugar estava aberto e o ingresso não era tão caro (5 euros). Paguei, entrei e já fui logo fotografando. De cara, vi três maquetes interessantes mostrando a Île de la Cité em três momentos históricos distintos. Primeiro, na fase pré-histórica, quando não havia nada, a não ser o Sena, a ilha, e as colinas que hoje são os bairros altos de Montparnasse, Montmartre, Chailot, etc. Depois, na outra maquete, a colônia romana, urbanisticamente projetada, que então se chamava Lutércia. Por fim, a Paris da dinastia Merovíngia, que já era a segunda maior cidade da Cristandade medieval, perdendo apenas para Constantinopla.
A cor azul-escura, em contraste com a mais clara,
corresponde a atual conformação do rio Sena, que antes era bem mais caudaloso.

Avenidas longas e paralelas davam forma ao plano urbanísitico
da colônia romana que daria origem a Paris.

Essa longa muralha que circunda a Paris medieval ocupava o lugar
que hoje é o Boulevard Saint German.

No mais, vinham os alicerces da velha Lutércia, um vasto emaranhado de pedregulhos (uns ainda inteligíveis, outros nem tanto) que se estendiam ao longo de todo o subsolo da praça, bem como da Catedral. Interessante é que, a certa altura, presenciei duas adolescentes espanholas (aliás, de língua espanhola) apontarem para uma determinada ruína dizendo que era ali a entrada do templo de Isis, que Dan Brown, em não sei qual dos seus romances, jurara que a Igreja Católica, malvada como ela só, havia usurpado para então construir a Notre Dame.



Eu não me contive e falei: alôoooouuuu, a Catedral só foi construída no século XI, quando não havia mais nenhum romano, e muito menos “hipotéticos-imigrantes-egípcios-adoradores-de-Isis” morando em Paris!... Mas elas teimaram, porque o magister dixte, mestre Dan Brown falou que a etimologia da palavra romana Paris vinha de Per-Isis (para Isis), e que ali havia uma grande pedra trapezoidal em ônix que é um centro magnético usado pelos sacerdotes antigos para realizar operações médicas, e... quem era eu para discordar?... Ora, eu era apenas alguém que sabia ler e, por isso mesmo, estava lendo uma placa que, muito nitidamente, declarava ter sido aquilo tudo uma simples terma, ou seja, um banheiro público que funcionou até o século IV da era cristã, e onde as pessoas faziam coisas muito distintas do que adorar uma deusa oriunda do nordeste da África!... E a placa também não mencionava nenhuma pedra ônix de ultra-sonografia ou ressonância magnética. E Paris não vem de Per-Isis, mas de parisii, a tribo gaulesa que primeiro ocupou aquele lugar!... Confesso que eu já estava tremendo e sem fôlego. 



Elas viram a placa, viram as piscinas e os tubos de cerâmica, viram até uma pedra com a inscrição latina Lutetia-Parisiiorum, mas não se mostraram nem um pouco convencidas: podia ser manipulação da Igreja!... Oi, como assim? Aquela cripta pertence ao Estado Laico Francês, e não a Igreja Católica. E se pertencesse a Igreja - manipulação por manipulação - seria muito mais fácil manter aquilo tudo soterrado na poeira do esquecimento onde jazeram por séculos! Ou então, no caso da pedra-mágica-com-doppler, seria melhor guardá-la num cofre nos subsolos do Vaticano. E onde estava essa fantástica kriptonita egípcia? Ficou invisível, ou só os inteligentes podiam vê-la?... Quer saber? Chega de papo! Não iria desperdiçar meu precioso passeio contestando afirmações tão francamente ridículas.  Se há um esforço inútil e extenuante, é o de contestar bobagens. Debitei aquilo na conta dos seus verdes anos e da péssima literatura que consumiam. Se bem que Dan Brown não tem culpa da burrice de ninguém!... Então, como já estava estiado, guardei minha câmera fotográfica e fui tomar café. Bonjour!  

sábado, 2 de abril de 2011

Quem disse que Paris não vale uma missa?

Assim começa o salmo 122: Que alegria quando me disseram vamos à casa do Senhor!... Era domingo de manhã, e eu tinha ido para o “Banquete da Vida” num dos endereços parisienses mais chiques de Deus: a Catedral de Notre Dame!... Havia duas filas de acesso: do lado esquerdo, uma fila curta, rápida, pouco concorrida, porque era a dos que pretendiam participar da missa; e do lado direito outra bem mais extensa, tumultuada, ruidosa porque era a fila dos turistas apressados, interessados apenas em fotografar. Ou seja, da entrada já se tinha uma medida clara da vida espiritual deste século fútil e desconfiado.  


Mas como a arte tem o condão pedagógico de provocar as almas mais distraídas ou obtusas, os passantes logo se arrependiam de sua pressa e, uma vez assaltados pela majestade da nave principal onde ecoavam hipnóticos cânticos gregorianos, eles logo furavam os cordões de isolamento e tomavam lugar nos assentos disponíveis. Era sempre assim...




Naquela manhã celebrava-se Côme et Damien (São Cosme e São Damião), dois jovens médicos sírios, do século II, que conciliaram medicina e fé numa missão duplamente salvadora ao redor do mediterrâneo, onde então foram mortos por soldados pagãos a mando de Diocleciano. Ironicamente, séculos depois, pagãos sofisticados agora folheavam o saltério, comovidos com a narrativa daquela legenda áurea, cantada no oratorium de Gounod, por um diácono negro com suabilíssima voz de barítono... E eu, cá comigo, ficava me perguntando que tipo de arte a incredulidade pode inspirar?
 

Ite, missa est!... Cantou o diácono terminando a celebração. Agora sim, de alma leve e elevada, as pessoas podiam sacar suas câmeras fotográficas para percorrer a catedral. E tantos foram os flashes disparados que mais parecia um começo de tempestade. Mas não era para menos: o esplendor estético revelava-se mais forte no pormenor do que na magnitude do conjunto, por isso a cada passo as pessoas se quedavam contemplativas.


Elstir, personagem de Proust, assim explica este fenômeno: "trata-se da mais bela Bíblia ilustrada que uma massa inculta poderá ler. O Homem-Deus, a Virgem-Mãe e os baixos-relevos onde se expõe suas vidas constituem a expressão mais terna e inspirada desse longo poema de adoração e louvor que a Idade Média vai estendendo aos olhos do bárbaro de ontem e de hoje. Não podes imaginar, além da minuciosa exatidão para traduzir o texto sacro, quantos achados de delicadeza teve o velho escultor, que pensamentos profundos e que encantadora poesia!... Pois então, meu caro, eis ali todo o Evangelho compactado em pedra, todo um gigantesco poema teológico e simbólico para educação dos corações toscos."     


Meu coração saiu educado e aquecido, mas do lado de fora, soprando uma aragem gélida, eu tive que correr para o café mais próximo, onde pudesse aquecer o restante do corpo com uma boa xícara de capuccino.