domingo, 29 de abril de 2012

O Cemitério

 “Eu quero viajar pela Europa, Aliocha, devo partir já daqui. E ao mesmo tempo eu sei que estou indo só a um cemitério, mas trata-se do cemitério mais precioso, é disso que se trata! Preciosos são os mortos que ali estão, cada pedra sobre eles fala de uma vida de passado tão incendiário, de uma fé em suas obras, sua verdade, sua luta e sua ciência, tão apaixonada que eu sei que cairei no chão e beijarei aquelas pedras e chorarei sobre elas; apesar de eu estar convencido, no meu coração, que há muito trata-se de nada mais que um cemitério”.



Este pequeno trecho de "Os Irmãos Karamazov" me veio a mente assim que deparei com o suntuoso necrotério do Père Lachaise, o cemitério mais visitado de Paris - quiçá do mundo!... E diante de visão tão monumental fica difícil não concordar com o personagem de Dostoiévski, afinal "se isso é está numa pior..."



É provável que haja cemitérios mais bonitos, mais organizados e mais bem conservados em outras grandes cidades. Mas em nenhuma outra se encontra um contingente de mortos tão ilustres quantos os daqui. A propósito, foi pensando nisso que cheguei a constatação de que outro não era o motivo desta minha viagem senão visitar túmulos e defuntos. Compostela quer dizer Campo da Estrela, e a estrela em questão é o túmulo de São Tiago, do qual surgiu a Catedral e a cidade. Mas estrelas também não faltam sob as campas parisienses. Com efeito, passeando no Père Lachaise ou no Montparnasse, tropeça-se numa celebridade falecida a cada metro quadrado, e estas mórbidas calçadas da fama deixa-nos a insofismável certeza de que a morte a todos iguala.


A minha visita, que havia começado um pouco antes no Montparnasse, teve como ponto de partida o túmulo do casal existencialista Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que, diga-se de passagem, fica praticamente ao lado da porta do cemitério. Era uma lápide simples, como a de qualquer casal pequeno-burguês, ou seja tudo aquilo que eles tanto desdenharam e que, através do casamento aberto (cada qual no seu lugar) tanto procuraram inovar. Mas a morte a todos iguala e, ironias à parte, não há como evitar o pensamento mordaz de que eles viveram separados até que a morte os uniu: Erunt duo in cova una (serão dois em uma só cova!)!
 


Passando adiante, seguindo as indicações do mapa (sim, há mapas e placas para facilitar o tour pelo cemitério) eu tentava encontrar o jazigo do escritor argentino Julio Cortázar. Mas entre indas e vindas vãs, acabei sendo atraído por um túmulo abarrotado de flores, maços de cigarros, isqueiros, bilhetes de metrô e outros apetrechos que lembravam um dispendioso despacho de macumba, mas que na verdade eram apenas singelas homenagens prestadas ao indefectível cantor Serge Gainsburg (o "Vando" da Île-de Franc) que ainda hoje atrai fãs do mundo inteiro!... E de Cortázar nem sinal. As  placas e mapas nem sempre cumprem o seu propósito,  e isso ocorre não por culpa delas, mas dos familiares dos defuntos que retiram as lápides para serem restauradas e demoram a devolvê-las, deixando os visitantes complemente perdidos. Foi o caso do pintor, e meu conterrâneo, Cícero Dias, cujo túmulo permanecia anônimo, aguardando (segundo informações do coveiro) que a viúva francesa devolvesse as inscrições douradas que há mais de um ano ela tinha recolhido para restauração!... Diante de tantas sepulturas indistinguíveis a coisa começava a ficar frustrante. Contudo, como as celebridades se avizinhavam, eu tive a sorte de encontrar bem ao lado de Cícero Dias, a campa do grande dramaturgo Samuel Beckett, que já não estava esperando Godot


Passando ao Père Lachaise, dei de cara com um casal tão famoso e controvertido quanto Sartre e Simone de Beauvoir, que - assim como eles - viveu seu amor a distância (mas não voluntariamente), e só na morte puderam se reunir. Era Heloise e Abelard. Aqui não havia ironia cabível. Apenas o testemunho de uma paixão que é tão lendária e polêmica quanto a autenticidade dos ossos que ali estão depositados. Porém, como dizia Mae West, quando a lenda for mais interessante do que a verdade, que publique-se a lenda! - Ali, portanto, estava o cenotáfio do amour sans fin!... Só não fiz uma foto melhor porque, como tudo na Europa, o mausoléu passava por uma restauração e estava rodeado por andaimes. 


Mas, não muito distante dali, outra lenda me aguardava, só que mais recente e ainda bem viva, apesar de finada. Era o roqueiro Jim Morrison, poeta e vocalista da banda "The Doors", que nem depois de morto deixou de causar! (verbo este que, no caso do cantor, enseja os mais variados complementos). Seu túmulo - e, por tabela, o de alguns vizinhos - fica isolado por grades de ferro, no intuito de conter o assédio dos fãs maloqueiros (outros nem tanto) que ali vão para cantar, levar flores, se drogar e às vezes consumar pequenas orgias. Detalhe: a maioria são adolescentes. 


E naquele dia, para meu azar, eles estavam lá, cantando e fumando maconha!... Mas era só isso. No túmulo havia flores e velhos encartes de LP's, e pedras que lembravam crack, talvez fosse só cascalhos. Fosse o que fosse, para não atrapalhar a singela reunião, nem desperta qualquer tipo de atitude hostil, recolhi-me à parede de uma sepultura vizinha e, sorrateiramente,  tirei uma foto. Depois parti para nunca mais voltar!... Não sozinho.   


Dali fui me encontrar com duas senhoras distintas, mas que na juventude também tiveram sua fase porra-louca (quem não teve?). A primeira era Madame Colette, dona da pena mais chistosa da moderna literatura francesa, e, ao mesmo tempo, a maior e mais sofrida personagem de si mesma, que ali, enfim, encontrava repouso. Pelo menos era o que dizia a sua lápide.   


A outra era Madame Lamboukas, dita Edith Piaf, a personificação da chanson française, que não só cantava o que vivia, mas vivia o que cantava!... Aqui, gostaria de deixar uma nota de utilidade pública: este foi um dos túmulos mais difíceis de encontrar, e que custou-me muita paciência e força de vontade. O problema não é a localização do jazigo em si, mas sim do nome da defunta, que fica na parte lateral da lápide, em letras miúdas, sumido ao lado dos seus entes queridos. Portanto, fiquem avisados: para achar Piaf, procurem o nome na borda do túmulo. 


Eu admiro esse gesto de simplicidade da família Lamboukas. Mas é possível ser simples sem necessariamente ficar invisível. O túmulo de Frédéric Chopin, por exemplo, além de adornado por uma bela estátua, mantem-se rodeado por vasos de flores e velas coloridas que são trazidas pelos inúmeros admiradores dos seus Noturnos e Prelúdios.



Por outro lado, alguns túmulos são tão arrojados e, digamos, pitorescos que é simplesmente impossível não identificá-los. Foi assim que, subindo a interminável ladeira que é o Père Lachaise (foi construído entre as colina de Chaumon e Belleville), a certa altura divisei a inusitada sepultura em forma de dólmen onde jaz Allan Kardek, o grande codificador da doutrina espírita.  Eu sou católico, mas como tenho muito amigos espíritas, não iria perder a oportunidade de atiçar-lhes a inveja!... E pela quantidade de flores ali depostas, percebe-se que o túmulo já não anda tão esquecido quanto antigamente. Isso graças ao crescente fluxo de turistas brasileiros que lhe fazem romaria.   


Outra sepultura inconfundível e absolutamente original é a esfinge castrada do túmulo de Oscar Wilde. Digo castrada porque o imenso pênis ereto que outrora compunha a estátua foi decepado e roubado por algum(a) fã carente de souvenires!... Mas isso não diminuiu em nada (ou quase) a popularidade daquela sepultura, haja visto que continua sendo o ponto mais procurado e concorrido do cemitério. Isso, aliás, pode ser constatado pelos incontáveis hieroglifos  de batom (em forma de corações, flores, nomes e beijos) com as quais os fãs, há décadas, vão recobrindo a lápide...


Alguns, talvez por nojo, preferem usar canetas no lugar de batom. E são os mais nojentos, pois estão deixando a escultura toda pichada.


O mapa dizia que ali já era praticamente a parte final do lugar, onde começa o declive que conduz aos fundos do cemitério. E era lá nos fundos que ficava o túmulo de Marcel Proust. Fui!... No caminho me deparei com ninguém menos que o grandioso Honoré de Balzac, a maravilhosa fábrica de clássicos, autor da monumental comédia humana, e que, bem antes de morrer, já havia  povoado o Père Lachaise com uma miríade de defuntos fictícios.  
  

Outra nota de utilidade pública: quando o mapa disser que você está quase no fim do cemitério, não tome isto ao pé da letra, pois do túmulo de Balzac até o de Proust estende-se uma álea de quase um quilômetro!... As botas, como era de praxe, começavam a incomodar, foi então que lembrei de prestar-lhes homenagem.  


Mas enfim alcancei Proust, ou melhor, o que sobrou dele. O túmulo era negro e bem mais simples  que o dos vizinhos. Seu único adorno era o nome do escritor e o imenso talento que ele evoca. Havia flores também, porém poucas - como poucos são os seus leitores.


Depois de rezar pela alma de Proust, sentei-me para descansar e comer uns biscoitos que tinha comprado antes de entrar no cemitério. Sei que isso parece estranho, e a bem da verdade a minha intenção era comê-los na volta para o hotel, mas como o passeio estava sendo mais demorado e cansativo do que eu tinha imaginado, decidi fazer o lanche ali mesmo. Outrossim, não tinha ninguém olhando, de modo que eu poderia comer sem nenhum constrangimento.  


Quase ninguém!... Mal tinha acabado de abri o saquinho de biscoitos e logo comecei  a ouvir o canto enferrujado de uns corvos que me espreitavam. 


A princípio não dei muita importância, achei que só estivessem curiosos. Mas depois eles começaram a aparecer de todos os lados e cada vez mais próximos. Fiquei receoso, era evidente que queriam algo, só não sabia se eram os biscoitos ou os meus olhos!... Parecia uma cena do filme de Hitchcock, ainda bati o pé, disse xô, va-t'en! Allez vous!... Mas tudo surtiu o efeito contrário, e eles permaneceram impávidos, a me mirar com o bico adunco!... Como não aguento pressão, resolvi atirar-lhes imediatamente o saco de biscoitos e sair à francesa. 


Aquele assalto me deixou um pouco abalado, e logo passei a considerar a inusitada situação em que me encontrava ali, sozinho nos confins de um ermo de 43 hectares, tão distante do portão, que sequer conseguia vislumbrar... E se já estivesse na hora de fechar?... Misericórdia! Estremeci arrepiado no receio de ficar trancado, de que a noite chegasse logo, e que uma lápide daquelas estalasse com fragor, e através de sua fenda surgissem lívidos dedos sem carne!... Credo! Desesperei-me, apanhei a mochila e, numa carreira aflita, varei aquele intrincado labirinto de ciprestes com o coração pulando na garganta. Errei vias, troquei rumos, perdi-me!... Foi um vexame. Só sosseguei ao avistar a cancela de ferro aberta, e uma velhinha elegante que passava na calçada tangendo um poodle.   


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